sábado, 19 de junho de 2010

Carta sobre mais uma atracação/sobre o desgosto.


Atracação.

Cabe-me posicionar o barco contra o vento, verificar o "fundo", lançar a âncora a uma distância segura o suficiente para não colocar em risco a estrutura da embarcação em caso de oscilação muito grande das marés ou dos ventos. Verificar a circunferência, sinalizar o local de ancoragem.

Deixar o barco.

"Procedimento padrão", dizem os iatistas engomadinhos.
"Questão de segurança", dizem os marinheiros cautelosos.
"Uma arte", dizem os rebocadores mais experientes.

De minha parte, penso que atracar sempre implica nalgum risco. Não pelo tipo de fundo, nem pela oscilação das marés, mas pelo que se há de encontrar ao deixar a embarcação e seguir em direção ao cais. A atracação é a véspera do desgosto, para um sujeito como eu.

Ah, estas cidades costeiras! Repletas de boemia e maresia. De pinturas amareladas, de mulheres ansiosas, de homens bêbados e de esquinas escuras: de clichês. Sou um vulto perdido em meio a uma tempestade noturna de sotaques desconhecidos, no tilintar de correntes rastejantes e moedas revolvidas nos bolsos dos sujeitos prevenidos. Sou um perfeito desconhecido e desconhecedor, ignorante e ignorado, completamente desmemoriado, mas deliberadamente displicente.

Não tenho nenhum interesse nas conversas animadas dos botecos próximos ao porto. Pouco me importa se os estivadores são sindicalizados ou se as prostitutas terão overdose quando a madrugada terminar. Não me compadeço das crianças pedintes, nem dos cachorros de rua. Não sou um ativista, tampouco um explorador. Atraquei contra a minha vontade.

Quis experimentar pela décima terceira vez o desgosto de pisar em terra firme. Sou um masoquista, isso sim.
[créditos da imagem: cais de monterrey, Califórnia by suprada urval photography]

domingo, 6 de junho de 2010

Carta sobre as memórias de um faroleiro velho.


Fui tomado de assalto por uma lembrança terrível de minha infância.

Ela chegou sorrateiramente e me invadiu as narinas quando decidi destrancar, após anos, a pequena escotilha de aproximadamente um metro de diâmetro que ocultava atrás de si uma outra câmara de serviços.

Todos os ácaros e toda aquela poeira poderiam ter me matado.

Mas é claro que não há duas câmaras de serviços num só Farol! Só que este era diferente, oras! Não se sabe por quê, ele foi construído com duas câmaras de serviços. Satisfeito com apenas uma, transformei a outra num depósito de quinquilharias. Ou seja, quase tudo que não fosse os dois macacões - as duas únicas mudas de roupa que tenho - , o quepe de marinheiro que achei há umas 15 semanas quando estava caminhando na praia, minha caixa de ferramentas, a "louça", que se resume a uma caneca, prato, garfo e faca de metal (como vê, não há razão para chamar isto de "louça"), uma bússola, uma pequena panela de ferro, um fogareiro, uma lamparina a óleo, um diário de bordo (em que anoto banalidades do cotidiano) e um lápis.

Havia uma pequena casa que ficava a poucos metros do Farol, mas o material vagabundo com que a construí se encarregou, junto com a última tempestade, de dar cabo dela. Aliás, foi justamente por isso que fui levado a improvisar uma casa no Farol, e é justamente por isso que não tenho acumulado muitos pertences.

Sim, claro, eu poderia simplesmente improvisar algo ao longo da torre, mas ela não é muito larga, não disponho de tanto espaço...por uma série de razões fui levado a destrancar a outra câmara de serviços e para que pudesse fazer daqueles quatro metros quadrados o meu dormitório, tinha de remover as quinquilharias de lá.

E foi então que me deparei com a maldita foto de família. Ao redor de uma mesa bem ornada e repleta de iguarias, lá estava eu, aos cinco anos de idade, com meus pais, avô paterno e os quatro irmãos, gordos, corados e ansiosos, porque famintos, hoje sou capaz de assegurar que nunca chegamos nem perto de estar. Aquela foto me fez lembrar de quando meu pai, numa daquelas noites em que não voltava terrivelmente bêbado disse-me que devia ingressar na Marinha. Dois anos depois, quando eu estava com sete anos de idade, minha mãe o deixou e levou a mim e a meus quatro irmãos para morar na casa de um comerciante argentino que ela dizia ter conhecido na missa de domingo.

Quando eu fiz quinze anos de idade o meu pai morreu.

O argentino, Maldonado, cuidou de minha mãe quando ela teve câncer. Mas quando ela morreu, eu já estava servindo, não a vi falecer. O argentino voltou para a Argentina e levou dois dos meus irmãos. A minha irmã casou-se com um rapaz da cidade em que morávamos e o meu irmão mais velho estava seguindo rigorosamente os passos do meu pai. O argentino resolveu entregá-lo a própria sorte.

O argentino partiu sem deixar vestígios. Quando voltei para casa nas férias de 1962 a minha irmã me contou tudo. Ela estava bem casada, grávida e parecia incomodada com minha visita. Fui embora e prometi nunca mais visitá-la outra vez.

Quando vim morar nesta ilha, trouxe o meu irmão mais velho e a sua inseparável garrafa de vodca comigo. Nós três vivíamos relativamente bem, até que um dia ele subiu até a lanterna do Farol e pulou de lá. A garrafa de vodca pulou antes e, pra dizer a verdade, a síntese da queda de ambos não foi uma das cenas mais bonitas que já vi na vida.

Isto aconteceu há vinte anos.

A questão é que, quando vi a foto, era como se a cena ali eternizada jamais tivesse acontecido. Eram todos fantasmas, inclusive eu. Depois de anos repetindo a mesma rotina, entre acender e apagar as lâmpadas do Farol, a minha memória tornou-se o retrato da câmara de serviços que eu pretendia ocupar naquela noite. Retiradas as coisas velhas, sobraram as paredes vazias, sujas e os cantos escuros. E eu.