quinta-feira, 16 de julho de 2009

Uma Carta sobre Passageiros.




Às vezes, quando chovia, eu procurava me entreter com uma ampulheta, debruçada sobre o púlpito da proa, com o vento sussurrando a solidão nos meus ouvidos. Amargava o passado, lembrando das pessoas que estiveram a bordo. Sentia-me culpada por terem resolvido não permanecer, enquanto as observava partindo através da escotilha. Estremecia ao pensar na solidão das viagens e nas tenebrosas despedidas.

Meus diários de bordo estão cheios de poemas de mau gosto, entre notas sobre ventos e coordenadas geográficas. Mal havia espaço para tantos rabiscos. Em minha filosofia pouco sofisticada, conformava-me pensando que assim como as desilusões, as tempestades vêm e vão... No dia seguinte, a calmaria me convidaria a tomar um trago com uma amnésia conveniente.

Não vou dizer que não me queixo mais. Contudo, tornei este soliloquiar menos freqüente, menos incisivo. E minhas amarguras, menos loquazes. Conheci outras pessoas, que entraram e saíram pelas escotilhas...e algumas delas num silêncio sedutor. Amei-as em seu silêncio misterioso. Não sei por que, mas vi pureza naquele silêncio.

Deixei que se entretivessem da maneira que julgassem melhor enquanto oferecia a elas o melhor entre os piores vinhos que guardava para ocasiões especiais. Elas observavam a mobília modesta, os lençóis amarelados, a louça por lavar, ainda que pouca. Observavam alguns dos meus trajes saboreados pelas traças e as rugas que começavam a sulcar o meu rosto. Continuavam em silêncio. Não esperavam ouvir quaisquer histórias, nem sobre pescadores, nem de marinheiros solitários. Depois repugnavam tudo com os olhos, preferiam hospedar-se em hotéis luxuosos, administrados por indivíduos de dentes muito brancos e perfumes franceses. Assim, suponho, deve ser para eles o mundo em seu retrato fiel: branco, limpo e por que não, francófono.

Sei que no fundo, não recusavam a hospedagem em razão da modéstia do lugar. Há alguns anos atrás o meu barco teria causado muito boa impressão. Evadiam-se por vergonha, não de mim, mas das lentes que escolheram acomodar sobre os próprios olhos. Não me preocupo com estes nobres visitantes. Orgulho-me de ter finalmente entendido o significado da palavra “passageiro”.

Mas eles virão, sempre. Observar o Horizonte, erguer o peito, citar uma frase qualquer de Fernando Pessoa e partir, cheios de nada.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Carta sobre um delírio.


Remo.
Remo devagar, ele dorme. Remo e respiro tranquilamente, enquanto ele ressona. Jamais senti tamanha paz sobre a água.

Ele não faz idéia, porque dorme. Ponho os olhos no mar e depois nele, olhos no mar, olhos nele. Devagar, enquanto remo.

Ele se vira, resmunga, desperta, me olha, sorri. E volta a dormir. E a ressonar e a me esquecer. Talvez eu não exista nos seus sonhos, mas o resto do mundo desaparece dos meus.

Remo e não há farol que magnetize o meu olhar enquanto ele dorme. Remo na direção do seu olhar, ao qual nunca chego.

Remo e submeto minhas minguadas capacidades físicas ao prazer de embalar seu sono. Descanso enquanto remo. E remo por horas, dias, meses.
Remo.



Imagem: Claude Monet - The Rowing Boat.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Carta sobre o Amor.


Da proa, as numerosas colinas que se exibiam no horizonte desafiavam até os olhos mais atentos; pareciam brotar a cada novo olhar. Eram ondulações intermináveis. Ocupada com este pequeno exercício oftalmológico, mal pude notar dois braços que se agitavam no mar. Mas a rapidez do meu olhar era inversamente proporcional à minha capacidade de compreender o que meus olhos haviam acabado de captar. Voltando-me para as colinas verdes, no entanto, algo latejava em minha mente. "Homem ao mar", pensei, reagindo ao meu estímulo visual. Logo recompus os fatos: eu estava sozinha naquela embarcação (logo nenhum tripulante poderia ter precipitado do barco) e os dois braços que se agitavam apenas compunham os movimentos de alguém que nadava, com bastante energia.

Então as colinas desapareceram do horizonte. E os meus olhos míopes haviam finalmente percebido uma figura masculina aparentemente afeita ao mar. Mas onde iam os seus braços morenos, que já escapavam novamente aos meus olhos? Iam longe? Iam por quê?

De repente, a figura se detivera em suas braçadas e virou-se. Mas eu não havia feito o menor alarme. De longe, nem que a minha curiosidade fosse a mais ambiciosa na história da humanidade eu poderia perceber naquele rosto alguma expressão. Deixei o barco para trás e pulei, disposta a ir em sua direção, mas os meus braços franzinos agitavam-se desajeitadamente, embora me garantissem algum deslocamento. O homem então passou a nadar em minha direção cada vez mais rápido, o que me fez deter.

Perto, de onde meus olhos míopes podiam até mesmo distinguir uma discreta cicatriz em seu belo rosto, vi o seu sorriso, os seus olhos, os seus olhos, os seus olhos. Lembrei-me dos Faróis. A sua respiração ofegante rompia as suas palavras em sílabas, embora eu já não estivesse mesmo atenta à mensagem que ele procurava transmitir. Num mundo com tantas e sedutoras cores, eu havia substituído o verde das colinas pelo castanho dos seus olhos no governo da minha íris. Eram tão raros aqueles olhos castanhos.

A mensagem persistia, mas desta vez coerente: "Seu barco! Ele se foi!"

Eu havia deixado o barco à deriva quando pulei. É ridículo, mas aconteceu. Esqueci-me de fundear...e o barco se foi.

Por dois olhos castanhos.
Por dois olhos estranhos.
Por dois braços morenos.

A verdade é que hoje, meu barco importa bem menos.