sábado, 16 de julho de 2011

À Deriva

Imagem: "Open Sea" por John W. Clark.


Vocação/ vontade/ virtude.
Não há gravidade para manter firmes os passos, nem o barco.
Não há horizonte nem bússola. Nem estrelas ou sextante.
Errar é um vício. Visto-me para zarpar e já nem lembro para onde.
Coleciono coordenadas de tempos obscuros. Cadernos repletos de borrões.
Erro para reclamar o recomeço. Erro porque me esqueço de onde parti.
Erro para justificar a ida para onde nunca estive.
Erro para não ter que lembrar quem deixei ao sair.

A virtude do irresponsável é a leveza. Caminhar sobre a areia úmida do litoral, sem deixar pegadas, sem registros, sem presença. Sem antecipar, sem antever, sem vésperas.
Sem passo passado.
Desmemoriado reincidente. Nem culpado, nem inocente. Livre.
Ateu. Sem ética, sem remo, sem quilha, sem quina. Redondo como as voltas intermináveis de um mundo de que observa mas não vê. Insensível, ignorante, inerte. Redundante em sua incerteza.

Deixa, deixa ela ir embora.













sexta-feira, 2 de julho de 2010

Carta sobre o Desamor.




Alguém um dia me ensinou que, durante um afogamento, a agitação da vítima em pânico pode comprometer a tentativa de salvamento.
Ele estava agitado, andando de um lado para o outro do convés. Eu estava encostada no parapeito da popa. Eu gesticulava muito, mas tinha pouco a argumentar. Gritávamos ambos, feríamo-nos ambos. O céu iria desabar em minutos, mas ele não se intimidou. Olhou as ondas e pulou n'água. Sabia nadar e queria ir longe.
Eu pulei em seguida, sem fazer muitos cálculos, como da primeira vez (quando ele apenas nadava majestosamente e por diversão, numa longínqua manhã de colinas muito mais verdes).
No entanto, em meio a ondas monstruosas, ventos uivantes e uma chuva intensa, ele começou a afundar.
Naquele exato momento, todas as noites em claro, todas partidas, todas as guerras, todas as tréguas, todas as dívidas e todas as culpas nos puxavam para baixo. Ele agitava os braços, aflito, para se livrar dos meus que o reprimiam, embora tentassem não menos que libertar. Livrou-se deles e deslocou-se mais alguns metros. Mas havia tanto descontrole, desespero e angústia, que o cérebro não podia enviar aos seus braços e pés o simples comando para que se movimentassem. Eles se debatiam patéticos enquanto as ondas cresciam, afastando-nos do barco e da bóia de sinalização.
Nadei para me aproximar, mais uma vez, ligeiramente sem fôlego. A altura das ondas causava medo, agora que a escuridão da noite e da tormenta já nos havia tragado totalmente. Tanta água vinha do céu, do mar, com tanta violência. Tanta água e quase nenhuma luz.
Tentei agarrá-lo mais uma vez, energicamente, tentando removê-lo da paralisia inexplicável. E daquela teimosia suicida!
De repente, vi em seus olhos injetados, pela primeira vez, a sombra do medo. E uma súplica vertia em lágrimas, milagrosamente discerníveis sob toda aquela chuva.
Não sei se havia amor, nem vontade. Já havia me esquecido de Deus, da Razão, das lições de Ondulatória...não conseguia lembrar do meu nome, da minha vida pregressa. Nenhum nano-filme antecedeu a sensação de que o fim vinha como uma gélida corrente marítima, no morno e calmo oceano da vida, varrer tudo sabe-se lá para onde...
Busquei algum sinal de pulsação, mas não o encontrei nem mesmo em mim.

[...]

Alguém um dia me ensinou que, durante um afogamento, a agitação da vítima em pânico pode comprometer a tentativa de salvamento. Porque pode resultar na submersão de ambos.

sábado, 19 de junho de 2010

Carta sobre mais uma atracação/sobre o desgosto.


Atracação.

Cabe-me posicionar o barco contra o vento, verificar o "fundo", lançar a âncora a uma distância segura o suficiente para não colocar em risco a estrutura da embarcação em caso de oscilação muito grande das marés ou dos ventos. Verificar a circunferência, sinalizar o local de ancoragem.

Deixar o barco.

"Procedimento padrão", dizem os iatistas engomadinhos.
"Questão de segurança", dizem os marinheiros cautelosos.
"Uma arte", dizem os rebocadores mais experientes.

De minha parte, penso que atracar sempre implica nalgum risco. Não pelo tipo de fundo, nem pela oscilação das marés, mas pelo que se há de encontrar ao deixar a embarcação e seguir em direção ao cais. A atracação é a véspera do desgosto, para um sujeito como eu.

Ah, estas cidades costeiras! Repletas de boemia e maresia. De pinturas amareladas, de mulheres ansiosas, de homens bêbados e de esquinas escuras: de clichês. Sou um vulto perdido em meio a uma tempestade noturna de sotaques desconhecidos, no tilintar de correntes rastejantes e moedas revolvidas nos bolsos dos sujeitos prevenidos. Sou um perfeito desconhecido e desconhecedor, ignorante e ignorado, completamente desmemoriado, mas deliberadamente displicente.

Não tenho nenhum interesse nas conversas animadas dos botecos próximos ao porto. Pouco me importa se os estivadores são sindicalizados ou se as prostitutas terão overdose quando a madrugada terminar. Não me compadeço das crianças pedintes, nem dos cachorros de rua. Não sou um ativista, tampouco um explorador. Atraquei contra a minha vontade.

Quis experimentar pela décima terceira vez o desgosto de pisar em terra firme. Sou um masoquista, isso sim.
[créditos da imagem: cais de monterrey, Califórnia by suprada urval photography]

domingo, 6 de junho de 2010

Carta sobre as memórias de um faroleiro velho.


Fui tomado de assalto por uma lembrança terrível de minha infância.

Ela chegou sorrateiramente e me invadiu as narinas quando decidi destrancar, após anos, a pequena escotilha de aproximadamente um metro de diâmetro que ocultava atrás de si uma outra câmara de serviços.

Todos os ácaros e toda aquela poeira poderiam ter me matado.

Mas é claro que não há duas câmaras de serviços num só Farol! Só que este era diferente, oras! Não se sabe por quê, ele foi construído com duas câmaras de serviços. Satisfeito com apenas uma, transformei a outra num depósito de quinquilharias. Ou seja, quase tudo que não fosse os dois macacões - as duas únicas mudas de roupa que tenho - , o quepe de marinheiro que achei há umas 15 semanas quando estava caminhando na praia, minha caixa de ferramentas, a "louça", que se resume a uma caneca, prato, garfo e faca de metal (como vê, não há razão para chamar isto de "louça"), uma bússola, uma pequena panela de ferro, um fogareiro, uma lamparina a óleo, um diário de bordo (em que anoto banalidades do cotidiano) e um lápis.

Havia uma pequena casa que ficava a poucos metros do Farol, mas o material vagabundo com que a construí se encarregou, junto com a última tempestade, de dar cabo dela. Aliás, foi justamente por isso que fui levado a improvisar uma casa no Farol, e é justamente por isso que não tenho acumulado muitos pertences.

Sim, claro, eu poderia simplesmente improvisar algo ao longo da torre, mas ela não é muito larga, não disponho de tanto espaço...por uma série de razões fui levado a destrancar a outra câmara de serviços e para que pudesse fazer daqueles quatro metros quadrados o meu dormitório, tinha de remover as quinquilharias de lá.

E foi então que me deparei com a maldita foto de família. Ao redor de uma mesa bem ornada e repleta de iguarias, lá estava eu, aos cinco anos de idade, com meus pais, avô paterno e os quatro irmãos, gordos, corados e ansiosos, porque famintos, hoje sou capaz de assegurar que nunca chegamos nem perto de estar. Aquela foto me fez lembrar de quando meu pai, numa daquelas noites em que não voltava terrivelmente bêbado disse-me que devia ingressar na Marinha. Dois anos depois, quando eu estava com sete anos de idade, minha mãe o deixou e levou a mim e a meus quatro irmãos para morar na casa de um comerciante argentino que ela dizia ter conhecido na missa de domingo.

Quando eu fiz quinze anos de idade o meu pai morreu.

O argentino, Maldonado, cuidou de minha mãe quando ela teve câncer. Mas quando ela morreu, eu já estava servindo, não a vi falecer. O argentino voltou para a Argentina e levou dois dos meus irmãos. A minha irmã casou-se com um rapaz da cidade em que morávamos e o meu irmão mais velho estava seguindo rigorosamente os passos do meu pai. O argentino resolveu entregá-lo a própria sorte.

O argentino partiu sem deixar vestígios. Quando voltei para casa nas férias de 1962 a minha irmã me contou tudo. Ela estava bem casada, grávida e parecia incomodada com minha visita. Fui embora e prometi nunca mais visitá-la outra vez.

Quando vim morar nesta ilha, trouxe o meu irmão mais velho e a sua inseparável garrafa de vodca comigo. Nós três vivíamos relativamente bem, até que um dia ele subiu até a lanterna do Farol e pulou de lá. A garrafa de vodca pulou antes e, pra dizer a verdade, a síntese da queda de ambos não foi uma das cenas mais bonitas que já vi na vida.

Isto aconteceu há vinte anos.

A questão é que, quando vi a foto, era como se a cena ali eternizada jamais tivesse acontecido. Eram todos fantasmas, inclusive eu. Depois de anos repetindo a mesma rotina, entre acender e apagar as lâmpadas do Farol, a minha memória tornou-se o retrato da câmara de serviços que eu pretendia ocupar naquela noite. Retiradas as coisas velhas, sobraram as paredes vazias, sujas e os cantos escuros. E eu.


sexta-feira, 14 de maio de 2010

Carta sobre a Esposa do Marinheiro.


Como esta mulher me comove!

Páginas, cantos, versos e lendas enaltecem o seu silêncio resignado e a sua espera constante. Crêem-na atada ao cais, paciente. Crêem-na frágil, gasta, cansada, deserta, ilha.
Crêem-na obediente e nula.
Crêem-na solitária.

Boatos atestam sua frigidez. Homens insensatos a cortejavam quando o marinheiro estava ausente.
Boatos garantem sua fidelidade imaculada, a despeito dos vestígios das outras muitas mulheres. Tantas mulheres quanto as ondas do mar, teve o marinheiro. E ainda tinha. Boatos asseguram.

O marinheiro, que a ama, justificava assim a sua existência. Ela, sempre grata e fervilhando de paixão, retribuía com um largo sorriso espontâneo.

Ontem encontrei a esposa do marinheiro. Ela, mais uma vez, comoveu-me. Nada sabia da atracação da balsa que trazia o seu marido. Eu sabia, porque vinha do cais.
Eu poderia jurar que ela corou. A ilha, afogadilha, esvaiu-se em seu novíssimo vestido vermelho. Crédulo pensava: "rubra de saudade, vai às pressas rever o marido", quando notei, distraído, logo adiante, um belo moço jovem que a aguardava impaciente.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Uma Carta sobre Passageiros.




Às vezes, quando chovia, eu procurava me entreter com uma ampulheta, debruçada sobre o púlpito da proa, com o vento sussurrando a solidão nos meus ouvidos. Amargava o passado, lembrando das pessoas que estiveram a bordo. Sentia-me culpada por terem resolvido não permanecer, enquanto as observava partindo através da escotilha. Estremecia ao pensar na solidão das viagens e nas tenebrosas despedidas.

Meus diários de bordo estão cheios de poemas de mau gosto, entre notas sobre ventos e coordenadas geográficas. Mal havia espaço para tantos rabiscos. Em minha filosofia pouco sofisticada, conformava-me pensando que assim como as desilusões, as tempestades vêm e vão... No dia seguinte, a calmaria me convidaria a tomar um trago com uma amnésia conveniente.

Não vou dizer que não me queixo mais. Contudo, tornei este soliloquiar menos freqüente, menos incisivo. E minhas amarguras, menos loquazes. Conheci outras pessoas, que entraram e saíram pelas escotilhas...e algumas delas num silêncio sedutor. Amei-as em seu silêncio misterioso. Não sei por que, mas vi pureza naquele silêncio.

Deixei que se entretivessem da maneira que julgassem melhor enquanto oferecia a elas o melhor entre os piores vinhos que guardava para ocasiões especiais. Elas observavam a mobília modesta, os lençóis amarelados, a louça por lavar, ainda que pouca. Observavam alguns dos meus trajes saboreados pelas traças e as rugas que começavam a sulcar o meu rosto. Continuavam em silêncio. Não esperavam ouvir quaisquer histórias, nem sobre pescadores, nem de marinheiros solitários. Depois repugnavam tudo com os olhos, preferiam hospedar-se em hotéis luxuosos, administrados por indivíduos de dentes muito brancos e perfumes franceses. Assim, suponho, deve ser para eles o mundo em seu retrato fiel: branco, limpo e por que não, francófono.

Sei que no fundo, não recusavam a hospedagem em razão da modéstia do lugar. Há alguns anos atrás o meu barco teria causado muito boa impressão. Evadiam-se por vergonha, não de mim, mas das lentes que escolheram acomodar sobre os próprios olhos. Não me preocupo com estes nobres visitantes. Orgulho-me de ter finalmente entendido o significado da palavra “passageiro”.

Mas eles virão, sempre. Observar o Horizonte, erguer o peito, citar uma frase qualquer de Fernando Pessoa e partir, cheios de nada.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Carta sobre um delírio.


Remo.
Remo devagar, ele dorme. Remo e respiro tranquilamente, enquanto ele ressona. Jamais senti tamanha paz sobre a água.

Ele não faz idéia, porque dorme. Ponho os olhos no mar e depois nele, olhos no mar, olhos nele. Devagar, enquanto remo.

Ele se vira, resmunga, desperta, me olha, sorri. E volta a dormir. E a ressonar e a me esquecer. Talvez eu não exista nos seus sonhos, mas o resto do mundo desaparece dos meus.

Remo e não há farol que magnetize o meu olhar enquanto ele dorme. Remo na direção do seu olhar, ao qual nunca chego.

Remo e submeto minhas minguadas capacidades físicas ao prazer de embalar seu sono. Descanso enquanto remo. E remo por horas, dias, meses.
Remo.



Imagem: Claude Monet - The Rowing Boat.