domingo, 28 de dezembro de 2008

Carta sobre ferrugens e esquecimento.


Nem só de acender e apagar lâmpadas vive um faroleiro.


Hoje, após acordar e sair para sentir a brisa que vinha do mar, voltei-me e olhei fixamente o Farol. As incansáveis chuvas de novembro haviam resolvido dar trégua, portanto, era hora de avaliar alguns estragos. Apanhei um velho balde e um velho pano num canto qualquer da casinha e subi lentamente as escadas. Pensamento leve, andar desempertigado, trabalho árduo a executar. Após as estações chuvosas, é preciso eliminar quaisquer possíveis causas de mofo ou infiltrações, removendo toda a água empoçada na laje. É necessário ainda verificar, limpar e desobstruir calhas, pingadeiras, ralos. Checar o estado da pintura, reforçar os impermeabilizantes, substituir telhas danificadas.


Apesar de imponentes e resistentes, os Faróis necessitam de reparos periódicos, especialmente na pintura e no revestimento das paredes. Mas não vou mentir. Para um faroleiro que vive sozinho, isolado numa ilha, não é fácil garantir uma manutenção impecável. Por um lado, é grande o número de faróis que o departamento de sinalização náutica tem de atender periodicamente, o que os obriga a eleger prioridades; por outro, as maravilhas modernas e parafernálias inteligentes como o GPS estão, gradativamente, colocando nossas torres no esquecimento. Mas eu sou o guardião desta torre, na Ilha do Fim do Mundo. A mim cabe prolongar ao máximo a existência do Farol, razão da minha própria existência. Pergunto-me, contudo: eu, que sirvo há tantos anos nesta ilha, onde estarei daqui a cinco ou dez anos?


Permenecerei aqui, na ilha, com meu companheiro de ferrugens. Sou um homem velho. Os anos também enferrujaram-me as expressões, cansaram-me os membros, esgotaram-me as capacidades físicas. Somos dois edifícios abandonados à implacabilidade do tempo e das marés. Assistiremos os dois aos combustíveis exaurirem, as luzes enfraquecerem e apagarem-se, restando apenas as estrelas do céu.
[A foto, retirada do site da Marinha de Portugal, pertence ao acervo pessoal do Faroleiro João da Silva Neto, que serviu no Farol das Berlengas [Portugal] por volta de 1950, com mais alguns companheiros. http://www.marinha.pt/extra/revista/ra_abr2003/pag14.html]

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Cartas de um farol na Costa de um Oceano Pacífico.


O sopro inconfundível da recompensa deslizou sob as minhas velas.


Mas, ao fitar o futuro como quem fita a pureza de um sorriso infantil, dou-me conta de que para além dessa sensação que embaralha todos os músculos da minha face de modo a compor uma nova expressão - a alegria - a janela do porvir ostenta um véu opaco.


Temo, pois.


Ergo, porém, as mãos para sentir a direção do vento...e procuro não perguntar às gaivotas que voam baixo pela chuva que pode não vir... abro os braços ao desconhecido e lanço as moedas de ouro ao mar. Porque as jóias mais valiosas que ostento são meus olhos. Olhos que apontam outros olhos. Olhos que me mostram faróis.


E quando sinto perfume inconfundível da terra... mal posso furtar-me ao desejo de atracar.